segunda-feira, junho 12, 2006

Álvaro Cunhal

Memórias de uma vida...

A sua resistência ao regime de Salazar e de Caetano, sob o qual foi preso, torturado e perseguido, tornou-se mítica pela ousadia, pela constância e pela coragem. A 20 de Julho de 1937, com 23 anos, Álvaro Cunhal é preso pela primeira vez pela polícia política de Salazar. É então acusado de distribuir propaganda na rua. Encarcerado no Aljube, será transferido passados dois meses para Peniche.

O ruído e cadenciado abrir (umas atrás das outras) das fechaduras e ferrolhos das celas. O bater de tairocas dos faxinas circulando com os baldes dos despejos. O baque metálico dos baldes ao serem atirados para o chão de cimento. O fedor espalhando-se nas alas logo misturado e coberto pelo da creolina. Novos apitos, formatura, conto. A distribuição do café e do casqueiro. O deslocar em cortejo para as oficinas. De novo ferrolhos e fechaduras, agora com o novo bater das portas e o isolar dos reclusos nas celas. Depois o amortecer dos ruídos e o alastrar do vazio da imensidão das alas, cortado apenas pelo bater descontrolado das tairocas e tamancos dos faxinas e o barulho de marteladas, de serras e de máquinas vindo das oficinas. Ao meio dia o espalhar do cheiro enjoativo a mofo das couves da sopa e do peixe frito em óleo rançoso impregnado a humidade viscosa do ar, do solo, das paredes, de tudo. A meio do dia para o almoço nova reanimação e repetição de ruídos e movimentos. E de novo o recolher e de novo o relativo silêncio. E de novo o barulhento abrir das celas, nova formatura, desfile para o passeio. Nova formatura, novo recolher, até à tarde a nova repetição de movimentos, deslocações e ruídos, e dos cheiros para o jantar… E os ruídos que pouco a pouco se apagam. E o silêncio da noite que avança… Precisamente nesse dia lá fora na rua passou pelo passeio fronteiro uma mulher levando o filho pela mão. Era a primeira vez que ali passavam. O moço olhou curioso o majestoso edifício, os torreões de pedra branca, o elegante recorte das ameias. _ Mãe, o que é? _ Não sei, filho - respondeu a mulher – Deve ser o palácio de algum ricaço. _ Mãe, porque é que as janelas têm grades? _ Não sei, filho – responde a mulher – Talvez porque lá dentro há muita riqueza e têm medo que os ladrões assaltem o palácio para roubar. _Ah! – admirou-se o moço. Ia ainda perguntar alguma coisa mais, mas um eléctrico de passagem provocou tal ruído que o moço se conteve e já não fez a pergunta. Foi talvez melhor assim. Porque talvez a mãe não soubesse responder-lhe.

Invernia - Nesse dia, como em muitos outros dias, como por vezes semanas a fio, não houve passeio. A chuva fustigava as imensas fachadas desbotadas das seis alas dispostas em estrela. Debaixo de chuva envolto numa nuvem cinzenta, o imenso edifício parecia uma coisa morta. Parecia. Pois lá dentro arrastavam-se centenas de vidas. Lá dentro repetiam-se as obrigatórias operações do ritual de todos os dias. Apitos, barulho, ruídos, movimentos, cheiros, formas, contos. Uma diferença. Tirando os cerca de cem que trabalhavam nas oficinas e nos afazeres internos da cadeia, os outros quatrocentos ficavam todo o tempo fechados nas celas. Fechados. Sós.
As reacções eram naturalmente diversas. Alguns tinham como passatempos autorizados fazer nó a nó cintos ou bolsas de cordel. Outros passavam os dias em interminável passeio de um lado para o outro tal como bichos enjaulados. Outros recordavam os feitos que os trouxeram para ali. Outros faziam projectos para o futuro nem que esse futuro ficasse para lá de dez, quinze ou vinte anos de prisão que lhes faltava cumprir. Outros deixavam-se embalar pelas imaginações eróticas. Outros ditavam-se e dormiam ou faziam por dormir. Outros como que hibernavam, incapazes de pensar fosse o que fosse. E outros ainda, perdida a noção do tempo que parecia interminável, estavam atentos a todos os ruídos, sempre à espera do momento em que, para receberem o rancho ou para o conto, lhes abrissem a porta quebrando o isolamento e a solidão. Então espreitavam cá para fora, para a imensidão da ala tão solene como uma nave de catedral e sentiam assim um ilusório bafo de espaço, amplitude, atmosfera e liberdade.

Um dia mais, um dia menos - Nesse dia, como todos os dias, semana após semana, mês após mês, ano após ano, a vida decorreu no ritual de sempre. O silêncio da noite cortado pelos apitos da alvorada e o súbito expandir do barulho da movimentação da cadeia

Sem comentários: