quinta-feira, outubro 05, 2006

O culto ao Deus Dinheiro

"A desvalorização do mundo humano cresce na razão directa da valorização do mundo das coisas." - Karl Marx
Há dias, no meio daqueles livros bem antigos, de folhas amareladas, que jazem em caixas de cartão no sótão, porque já não têm lugar nos móveis da casa, encontrei as “Vinhas da Ira” de John Steinbeck, um dos mais perturbantes clássicos da literatura do século XX e que todos deveriam ler uma vez na vida. Um malmequer do campo, seco pelo passar dos anos, marcava uma página da qual transcrevo estes parágrafos:
"O trabalho do homem e da natureza, o produto das cepas, das árvores, devem ser destruídos para que se mantenham os preços: Despejam-se carregamentos de laranjas em qualquer lugar. (…) Porquê comprar laranjas a 20 centavos a dezena se basta ir com o carro e colhê-las sem pagar nada? Então, homens armados de mangueiras de regar vertem petróleo sobre os montes de laranjas (…). Um milhão de famintos tem necessidade de fruta e regam-se com petróleo os montes dourados.
Lançam-se batatas ao rio e colocam-se guardas nas margens para impedir que os pobres as recuperem. Matam-se os porcos e enterram-se. (…).
E as crianças esfaimadas têm de morrer para que cada laranja dê benefícios. A consternação lê-se em cada olhar, e a cólera começa a brilhar nos olhos daqueles que têm fome. Na alma do povo, as vinhas da ira crescem e espraiem-se pesadamente, pesadamente amadurecendo para a vindima
."

O horror que sinto ao ler estes excertos define-se numa palavra: capitalismo. "As vinhas da ira" situam-se nos Estados Unidos dos anos 20, mais concretamente no ano 1929, em plena crise agrária e económica, o famoso "crack de 29."
O romance, inspirado na vida real, descreve uma situação realmente cruel, que exemplifica bem as contradições próprias do capitalismo. Ao mesmo tempo que se morre por desnutrição, o governo destrói os alimentos para que estes subam de preço. O problema desta sociedade capitalista é sempre o mesmo: o dinheiro. Sobrevaloriza-se o valor abstracto do dinheiro ao nível de um Deus Todo-poderoso ("o dinheiro tudo pode" diz-se), acabando por transformar as pessoas em simples vassalos de um Deus que eles mesmo inventaram. Há os que dependem dele para poder conseguir o que originalmente lhes seria dado pela própria natureza, como alimento ou refúgio. E há os outros que o adoram e necessitam, como um fim em si mesmo, talvez porque crêem que, como Ente Todo-poderoso, lhes dará a felicidade, ou os fará pessoas melhores e mais completas.
Os fiéis devotos procuram que nada escape a este Ser Todo-poderoso. Nem ao menos a ciência, angariadora de verdades, e por vezes tida como oposta às religiões, escapa a este culto. Talvez numa sociedade mais humanista o objectivo da ciência fosse o bem-estar das pessoas, mas, nesta sociedade capitalista, o objectivo é esse Ente Omnipotente e Omnipresente. Enquanto alguns cientistas fazem peripécias para investigar, com parcos recursos, a vacina contra a malária ou a sida, o verdadeiro financiamento médico está orientado para o desenvolvimento de produtos do emagrecimento ou da cura da cálvice. Talvez fosse mais fácil, e mais barato, ensinar a essas pessoas que podem fazer desporto, ou aprenderem que são belas tal como são, e destinar esse dinheiro a vacinas. Mas esse Deus chamado Dinheiro impede isso, porque os doentes que necessitam dessas vacinas são pobres, são terceiro-mundistas, são pagãos do Dinheiro. Em contrapartida, os fiéis devotos ocidentais estão dispostos a participar deste culto para alcançarem, o que eles consideram ser, pessoas melhores, ainda que seja de forma artificial.
Este Deus acaba por estar presente em todas as facetas da nossa vida. Rege a nossa alimentação, a nossa educação, a nossa saúde, o nosso trabalho e, inclusive, grande parte das nossas relações sociais. Este Deus também tem os seus apóstolos, defensores da fé, que escrevem livros sagrados, como São Adam Smith. Este Deus oferece uma promessa de salvação, promete a felicidade apenas com a sua presença, ao proclamar "quanto mais Dinheiro mais felicidade". Asseguram-nos um lugar no Paraíso. "Hoje és pobre, mas podes chegar a ser rico: todos podem" É esta a receita da mensagem. E, claro está, o culto ao Deus Dinheiro tem também os seus pastores, responsáveis por conduzir o rebanho no bom caminho do Senhor. Responsáveis do próprio Estado e de organizações que eles mesmo criaram, tendo por objectivo assegurar que o caminho a seguir se encontra baseado nesse Deus e nos parâmetros da sua religião. Nada pode escapar ao seu controlo, e a finalidade será sempre a mesma: o Capital, a Riqueza, o Dinheiro. Diferentes nomes relacionados com uma mesma ideia abstracta que tem de ser adorada.
Mas chegará o dia em que esta religião desaparecerá inevitavelmente, e os pastores ver-se-ão abandonados pelos seus rebanhos, quando perderem a fé e procurarem finalmente outras formas de organizar a sua vida, sem render culto a este ser. Porque este ser, ao fim e ao cabo, nada mais é do que um conceito, e isso é algo que nunca devemos esquecer.

9 comentários:

a.castro disse...

Li há já muitos anos as "Vinhas da Ira" de Jhon Steinbeck. Link de Steinbeck Center.
É perturbador que, um século depois, o trecho escolhido dessa excelente obra reflicta a realidade presente, com exemplos que, no nosso país, já nos são infelizmente familiares.
E assim foi, e continua a ser, o capitalismo. Até quando?...

CORCUNDA disse...

Livro sempre actual,em 1920 ou 2006 e julgo que por muitos mais anos irá continuar actualizadíssimo... infelizmente.

Diogo disse...

Este é um mundo cão. Este é um mundo de merda. Mas o paradigma começa a mudar. A selvajaria capitalista destrói-se a si própria com as mesmas ganas com que destrói as pessoas. Bom artigo!

AC disse...

Tenho poucas dúvidas de que a ordem mundial baseada no dinheiro, vai ter de ser alterada. Na medida em que o capital exige mais e mais retribuição, sacrificando para isso o emprego, rapidamente chegará o dia em que a sociedade, na forma actual, se tornará insustentável. Simplesmente o capital deixará de ser retribuído porque as sociedades não poderão comprar os produtos e serviços fornecidos pelo capital.

É muito óbvio. Actualmente, quando uma empresa encerra ou se deslocaliza para países de mão-de-obra mais barata, deixa um número determinado de cidadãos que não poderão comprar os produtos dessa empresa, mesmo que mais baratos. Nem os dessa, ou de outra.

Na medida em que o emprego desaparece, substituído pela automatização, o número de desempregados aumentará até ao ponto em que as empresas começarão a ter prejuízos exactamente por terem gerado o desemprego.

Até lá, há caminho a percorrer – e este faz-se a andar – mas, seria cómico, não fosse tão trágico, ouvir as paroladas da corrente liberal. Imbecis metidos a inteligentes.

Parabéns pelo belíssimo post.
Cpts

AJB - martelo disse...

li o livro, talvez por volta dos meus 16 anos... e como se confirma o entendimento humano continua uma farsa...

Felipe MK disse...

"Tudo cheira à imoralidade e um extremo individualismo, problemas que tem propulsores muito comuns e “apaixonantes”: o sistema econômico, a ambição pelo lucro, o dinheiro em si mesmo."
Incrivelmente, essa foi uma das frases do meu primeiro post.
Coincidiu com o que tu disses, extamente por que essa é a realidade!

Assino embaixo de tudo, exceto "O culto ao "D"eus Dinheiro".

Por que "ele" nao é nada, nem um pouco, do que parece ser, devemos nos referir-mos a "ele" como deus dinheiro...apesar disso entendi a sua colocação da letra maiúscula...

Grande abraço!! Foi um prazer encontrar o seu blog! Estarei retornando, mas espero sua visita tb!

Anónimo disse...

Como toda "religião", o capitalismo também encerra suas mentiras, seus mentirosos e seus seguidores de fé cega.
Muito bom o texto e também o comentário do AC.
É evidente que o capitalismo está devorando a si mesmo, não de agora. Tanto é, que os países mais poderosos vêm demonstrando grande preocupação com sua própria lucratividade. Parece-me que a crise prevista por Marx está aí presente em nosso tempo, assim como em outras ocasiões (nas décadas de 30 e de 70, por exemplo), reeditando-se a intervalos cada vez menores, até o ponto de um total colapso.
Embora os "pastores" procurem desdenhar essa idéia, também não vejo salvação ao capital.
Mesmo que ele ainda possa se reestruturar mais umas tantas vezes, ainda assim a humanidade não terá como suportar o peso de sua sede de sangue.

PC disse...

"As vinhas da ira" juntamente com "A mãe" de gorki sao dois livros fundamentais.

Anónimo disse...

Não sei se será de seu agrado, mas achei um texto interessante, que topa o dinheiro, aqui:
www.aparenciasdoreal.blogspot.com