quinta-feira, maio 10, 2007

Ladrões de tempo

Q

uando se rouba dinheiro, jóias, quadros ou outro qualquer objecto de valor, se o ladrão se arrepender, pode sempre devolver o produto do roubo. Quando se rouba o tempo, não existe forma alguma de o devolver. O tempo perdeu-se, irremediavelmente. Cada um de nós pode fazer com o seu tempo, tudo o que lhe der na gana. Ninguém deveria dispor do tempo dos outros contra a sua vontade.
Vítor Hugo dizia: "A vida é curta e ainda a encurtamos mais com o insensato desperdício de tempo". O problema está em que uma boa parte da perda é forçada por pessoas incapazes de respeitar os bens alheios. Há pessoas que roubam o tempo dos outros de forma impune. Diz-se que o tempo é ouro, mas não me parece que possua os mesmos quilates daquele que é usado para fabricar jóias. Porque se arrogam o direito de no-lo roubar? Ainda que o queiramos "gastar mal", esse tempo é nosso! E o problema ainda é mais grave, na medida em que esse roubo se faz em plena luz, descaradamente, impunemente. O tempo é ouro

Podia enumerar múltiplos exemplos. Mas vou apenas referir-me a dois: engarrafamentos e filas em algumas repartições públicas. Cada um de nós deve ter uma experiência abundante de situações idênticas de roubo.
Todas as manhãs, para chegar ao trabalho, muitos cidadãos têm de passar por entupimentos enormes de trânsito. E o mesmo acontece ao final do dia, de regresso a casa. Todos os dias. Felizmente, este é um problema que não me aflige porque estou a 8 minutos em transporte público do meu local de trabalho. Mas, quando tenho de ir a Lisboa fico com enxaqueca logo na véspera, só de pensar naquilo que vou ter de passar. Quem nos devolve o tempo perdido olhando a matrícula do carro da frente? E todos os dias o mesmo, ainda que seja uma matrícula diferente…
Quando vamos a um Banco, por exemplo, precisamos de fazer fila de uma forma quase sistemática. Reparamos num "guiché" com o aviso correspondente: FORA DE SERVIÇO. E pensamos porque diabo não nos atende a pessoa que está por detrás da janelinha. Simplesmente porque está a fazer o serviço que interessa ao Banco. Mas com mais pessoal poderiam certamente atender os clientes e gerir o nosso dinheiro, não? Será que os gerentes não vêem as filas? Não sabem que com mais pessoal, estaríamos menos tempo à espera? Quem nos devolve esse tempo perdido?
Quando precisamos de resolver algum tipo de processo numa repartição pública, é para esquecer. Demoras e mais demoras, constantes pedidos de mais este ou aquele documento, de novo demoras, pedidos de informação que não chegam, escusas dos serviços com outros organismos, de novo mais demoras e fazemos por esquecer que o nosso tempo precioso não tem para eles nenhum valor. Apenas tempo perdido… O mais que pode acontecer é recebermos uma explicação de credibilidade duvidosa.
A verdade é que não permitiríamos a um ladrão fugir impunemente depois de ter pedido perdão por nos roubar a carteira: "Perdoe a moléstia, senhor (ou senhora) mas acontece que eu preciso de aumentar as minhas disponibilidades monetárias". O que mais me indigna é que nos tomem por idiotas.
A verdade é que o tempo dos poderosos é ouro, e o dos cidadãos é lixo. Não há pois problema se o deitarmos fora. O tempo perdido é inversamente proporcional à categoria das pessoas. Quanto mais categoria, menos tempo perdido, quanto menos categoria, mais tempo roubado. Às vezes surpreende-me a paciência de alguns que conseguem aguentar sem refilar. Ficam nas filas do Banco e não mostram o mínimo sinal de impaciência. Os condutores, entretêm-se nos engarrafamentos, tamborilando com os dedos sobre o volante ao som da música do rádio. Será que alguma vez fizeram o cômputo do tempo perdido à semana, ao mês, ao ano, na vida? Se o fizessem, descobririam que lhes estão roubando uma parte importante. Que fazer então? Ir a tribunal a denunciar os ladrões? É impressionante a impunidade dos ladrões de tempo. Nunca lhes acontece nada. Ninguém entra com as algemas num Banco para prender o gerente, ninguém se lembra de colocar o ministro das obras públicas na prisão e ninguém grita "ladrão" quando o seu tempo é sistematicamente roubado numa repartição pública. Ao pobre desgraçado que rouba uma galinha (ou um creme de 3,99 euros) levam-no a tribunal.
O tempo é de cada um de nós. Ninguém tem o direito de delapidá-lo. Bernard Berensen, conhecido critico de arte, quando estava quase a cumpri 90 anos, disse: "Gostaria de colocar-me numa esquina com um chapéu na mão, pedindo aos transeuntes que depositassem nele todos os minutos da sua vida que não chegaram a usar".
Todos nós pacientes (e impacientes) cidadãos deveríamos processar a quem nos rouba um bem tão precioso, porque não há direito a cometer estes roubos a plena luz, de forma tão descarada e com impunidade total.

4 comentários:

Ivo disse...

Magnólia,

Sem dúvida uma excelente divagação!! (em nada divagada, mas sim, muito ponderada e interiorizada!)

Desconhecia esse caso do "creme" e, ainda bem que o desconhecia!! É caricato demais para crer numa situação dessas!!

O tempo, esse bem que todas as manhãs me é usurpado impunemente por alheios! Ainda hoje, um nada belo acidente, fez com que os já costumeiros 30/35 minutos que demoro no percurso casa trabalho se alargasse a uns mais engraçados 55 minutos!! (e tive sorte, porque estava a passar na altura em que ele acabara de ocorrer)!!

Já dizia César das neves que na vida «Não há almoços Grátis»! Qualquer acto, qualquer situação, tem um preço!! O tempo que me é (nos é) roubado, tem de certo um preço elevadíssimo!! Quanto?

Bruno A. disse...

Fantástico este teu texto. Compreendo-te perfeitamente. Tens toda a razão. Há alturas em que, de facto, sentimos a nossa vida a ser desperdiçada diante de uma multidão de gente que faz o mesmo que nós, a longa, divina e tão típica "espera". Por vezes também dou por mim (e isso é igualmente grave) a odiar-me por ter passado o tempo sem fazer nada, enquanto poderia sair ou aprender qualquer coisa, ao invés de me colar á Televisão à espera do filme ou do episódio novo e tal e outros tantos vicios que as consolas nos (me) propõem de forma muito difícil de resistir...
É mau. é Mau , mas, no meio do mau encontro coisas boas no "gastar do tempo". Há coisas boas, na qual faço questão em deixar o tempo demorar-se um pouco mais, fugir mais depressa. Coisa boa por exemplo é fazer uma pausa do trabalho que nunca mais acaba, dos prazos apertadíssimos a cumprir, e, no entanto, ao invés de me preocupar com tudo aquilo que me pesa nos ombros, procurar um encosto confortável na minha cadeira, e, sem a ponta de culpa, literalmente deixar o tempo correr a ler textos como este. É um prazer que nem as maiores responsabilidades do mundo me conseguem tirar. Parabéns e muito obrigado.

Anónimo disse...

Sei bem do que escreves e reflectes, eu sou daquele que refila e que não fico qietinho num canto. Pelo menos tento sempre protestar quando vejo que me estão a roubar o tempo. Nas repartições públicas, então, aí é um descalabre total. Roubam-nos mesmo todo o tempo possível. Um vez na Finanças, quado o sistema passou a digital, cheguei ao balcão e me atendeu um asenhora que estava a comer uma sandes... Pedi o documento que necessitava, sabendo que o podia ter na hora... Resposta a meio de uma sandes...'o sistema está sem rede' - Treta é que estava, eu sabia-o bem que o sistema estava a operar... Perdi o meu tempo e sem necessidade descompus a senhora e chamei a atenção do seu chefe. Resultado - Documento na hora...
Sem palavras não é?

Kiss

Leandro disse...

Quanto menos tempo dispuser a massa, menos haverão de poder reclamar...
Tanto melhor àqueles para quem o "tempo é dinheiro".