quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Liberdade e caricaturas

Freitas do Amaral passou-se. Passou-se. Posso dizer que o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal se passou? Vá lá, é uma caricatura, um leve toque burlesco neste País que presa a anedota como ninguém, ao ponto de, por vezes, até eleger algumas para cargos de Estado.Não, não estou a falar de Freitas. Mas lamento que o ministro venha lamentar, nos termos em que o fez, a publicação dos famosos desenhos ou caricaturas dinamarqueses. Repare-se: ele não lamenta o mau gosto, o que até seria sensato. Lamenta a publicação, não sei se perceberam?Ora, eu lamento que há uns largos anos a Igreja Católica e os representantes de Deus na terra tenham visto sequiosamente as chinesices porno-eróticas do célebre filme «Pato com Laranja» e depois se tenham indignado com o facto da televisão do Estado ter cometido a heresia de passar o filme para os portugueses se lambuzarem no sossego do lar.Lamento também que Herman José – que hoje está feio, porco e mau – tenha sido censurado na televisão do Estado em pleno cavaquismo no tempo em que fazia das mais brilhantes caricaturas das nossas figuras históricas.Lamento, também, que O Evangelho Segundo Jesus Cristo de José Saramago tenha sido impedido de concorrer a um prémio literário europeu por um tal senhor Lara, com barba de taliban, mas sem turbante – na altura investido de um «sub» cargo qualquer da Cultura num governo de direita.Lamento também que uma caricatura do Papa João Paulo II com um preservativo no nariz tenha trazido tantas incomodidades à Igreja Católica, também há uns anos, metendo bispos e padres ao barulho como se de uma nova cruzada se tratasse.Lá fora, Martin Scorsese ouviu o que Maomé não disse do toucinho a propósito do seu filme – aliás, brilhante - A Última Tentação de Cristo. Um incêndio num cinema de Paris, no qual morreu um jovem, foi a forma de alguns dos nossos fundamentalistas de serviço assinalarem a passagem da película por aquelas bandas. Dirão: mas aqui ninguém desatou a incendiar embaixadas, a queimar bandeiras e a matar alguém. Certo. Mas a mim, confesso, apeteceu-me ser do Hamas sempre que via a Manuela Moura Guedes apresentar os noticiários, por exemplo. Contive-me. Mas se tivesse poder, se calhar tentava-me. O antigo bastonário Augusto Lopes Cardoso dizia há dias, num jantar, que todos os estados ditos democráticos têm tentações totalitárias. É verdade. Mas há excepções. Na Dinamarca, um jornal rasca de direita fez umas caricaturas rascas de Maomé. O governo, mesmo quando tudo arde, não se encolheu. Nem sequer usou aquele argumento, muito em voga, que reza assim: «Liberdade de expressão, sim, mas?». Disse apenas que a liberdade de expressão é isto mesmo: não meter a pata, mesmo naquilo que nos dá, pelo menos, o direito de lamentarmos o mau gosto.Como li e bebi a colheita de Edward Said em Orientalismo e noutros escritos, a mim também não me apanham em hipocrisias saloias sobre o respeito pelo outro e a tolerância, mais a pensar nas nossas economias e diplomacias subterrâneas do que, propriamente, no choque das civilizações.Há, nos anos mais recentes, um responsável mundial por muito daquilo que é hoje a efervescência no Médio-Oriente. Chama-se Bush, George Bush. Nem de propósito, os seguidores mais ou menos envergonhados das suas guerras preventivas são alguns dos que se atiram às caricaturas para deitar água na fervura que promoveram. O mais perigoso fundamentalismo está dentro de portas. Diz-se democrático, mas o que eles querem sei eu.
Miguel Carvalho in "Visão", 9 Fevereiro 2006

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