Álvaro,
Nunca ninguém te apanhou desprevenidoA senhora vestida de negro, de quem não tinhas medo, veio de madrugada, mas tenho a certeza que não te apanhou desprevenido. Nunca ninguém te apanhou desprevenido.Foi há uns meses, a última vez que falámos, perguntaste pelo João, e se eu estava a fazer coisas bonitas, como perguntavas sempre. Rimos, já não me lembro de quê. Sempre o teu sentido de humor. Já reparaste que te estou a tratar por tu? Finalmente, consegui. O João está bom. Tenho pena que não o conheças. Mal te visse, ia esticar-te os braços a pedir colo, como faz com todos os que sente serem amigos. Eu ando a tentar fazer coisas bonitas, mas já não te tenho cá para as veres. Vais fazer-nos muita falta. A todos. Sabes, está a ser difícil escrever este texto. Deve ser dos textos mais difíceis que alguma vez escrevi e alguma vez escreverei. Não gosto de lamechices, e tu muito menos.Lembras-te do dia em que nos conhecemos? Eu lembro-me. Foi para aí há uns oito anos. Tremia. Ia falar cara a cara com um homem que vinha nos livros de História. Queria pedir-te ajuda para um trabalho que estava a fazer sobre ti, para a faculdade. Bastaram uns minutos para o nervosismo passar. Sem dar por isso, estava a falar contigo de igual para igual. E a culpa era tua. E, apesar de teres dito que não te parecia bem um trabalho sobre ti, eu levei a minha avante. Só pediste que te mostrasse o resultado final. Mostrei e acho que gostaste. E depois quando, estagiária de jornalismo na "Notícias Magazine", te pedi uma entrevista, tu deste-me um livro "Cinco conversas com Álvaro Cunhal". Nunca consegui voltar a lê-lo, mas agora ao passar os olhos por ele, detive-me na tua última resposta: "Não sou apenas amigo de camaradas do meu partido. Sou-o e sou capaz de sê-lo de pessoas que têm opiniões muito críticas em relação a concepções e posições do PCP e naturalmente às minhas. Tive ao longo da vida, como uma das maiores riquezas, muitos e muitos amigos, a acompanhar-me, a estimularem-me na luta e na vida. Continuo a tê-los. E também, na medida em que vou conhecendo e conhecendo melhor pessoas que não havia conhecido, passo a estimá-las e vejo que posso ganhá-las como amigos e de vir a ser amigo delas. De ti, por exemplo." Obrigada, igualmente, respondi então e respondo agora.
Um beijinho. Até sempre.
* Jornalista da "Notícias Magazine"catarinapires *
(Post recuperado)